domingo, 23 de outubro de 2011

Tempé, mãos e manas

Hoje acordo com a voz do motorista debaixo da minha janela. Estranho, porque a esta hora já aqui não devia estar. Ao pequeno-almoço venho a saber que os dois pneus da frente do carro amanheceram furados. Não do meu, porque não adquiri aqui nenhum, mas o de serviço. Este é o carro que transporta os professores para a universidade e, claro está, houve alguns que hoje não deram aulas. Felizmente, não precisaria dele.

Começo logo a pensar se os furos teriam alguma relação com o facto de, no sábado, ter estacionado o carro em frente às bancas de frutas junto ao mar, enquanto fui rapidamente ao supermercado. Este pensamento ocorreu-me porque, na semana passada, alguns dos “mãos” e das “manas”, que por ali vendem, ficaram um tanto ou quanto chateados com a minha pessoa, porque resolvi comprar noutra banca o que estava para comprar na anterior, “Malai, malai” e o resto não entendi… Todos vendem o mesmo e, como vendem caro, cada vez que lá passo as bancas estão cheias de produtos, mas sem ninguém para comprá-los. Quem ali vai sujeita-se, muitas vezes a comprar mais caro ou a regaterar. Muito e muito haveria a dizer sobre isto, mas vou tentar resumir nos seguintes pontos:

1-Timor não tem recursos humanos qualificados;
2-Como tal, tem de contratar estrangeiros;
3-Para atrair estes estrangeiros, paga a peso de ouro a muitos deles;
4-Os timorenses continuam a ganhar muito mal;
5-Os que vão para fora estudar, com bolsas, muitas vezes não voltam, porque vêm ganhar pior do que nos países onde estudaram, mesmo trabalhando aí noutras áreas;
6-Mas há excepções: políticos e alguém que tenha a sorte de ser reconhecido, por exemplo, por ter feito um doutoramento nos Estados Unidos ou na Austrália ou na Nova Zelândia, consoante as possibilidades;
7-Sabendo que há quem compre, os vendedores sobem os preços;
8-Mas como sobem os preços, os produtores, também os sobem;
9-Para conseguir continuar a ter lucro, os vendedores compram em quantidade para obter descontos;
10-Como só os estrangeiros e alguns timorenses é que os adquirem, não escoam o que compram, mas também não baixam os preços… “compra caro, compra caro”… e perdem dinheiro.

Resultado: esta clivagem gera rancor e rancor gera rancor e ninguém gosta de ser mal tratado, estrangeiros e timorenses.

O episódio do carro fica no ar, enquanto vou à faculdade. No regresso, preciso de comprar um cartão para carregar o telemóvel. Enquanto compro a um rapaz, logo aparece outro para me tentar vender... exactamente o mesmo! Faz sentido?

Apanho um táxi e preparo logo uma nota de 1 dólar para pagar no final do curto percurso. Dou o dinheiro e digo Bom dia, “mão”. Não obtenho resposta. Se sou “malai” devia pagar-lhe mais, supostamente. Mas 1 dólar é o valor tacitamente acordado para uma viagem como a que fiz.

Resolvo, desta vez, comprar alguns legumes e fruta nas bancas perto de casa. Curiosamente, verifico que o preço é inferior ao praticado nas outras perto do mar, o que é estranho, porque estas têm muito menos quantidade. Fico contente por não ter de regatear nada e aqui consigo encontrar “tempé”. Pago e, enquanto espero pelo troco, pergunto como é feito. Um rapaz, com nítida vontade de praticar o seu Português, começa a tentar explicar-me.

Tenho de dizer que, pelo que tenho observado, os timorenses mais novos são, de maneira geral, mais abertos e simpáticos que os mais velhos. Conversa puxa conversa e numa tentativa de lhe perguntar onde aprendia Português e em que ano andava, responde-me com a idade: 18 anos. A “mana” não regressa com o troco e a conversa continua. Fico a saber que anda no oitavo ano, em que escola, onde mora e que a senhora que continua sem voltar com o troco é a sua avó. Pergunto-lhe pelo troco e, passado um bocado, regressa a dita. É então que abre uma gaveta e lá me dá os 2 dólares que eu esperava. Pergunta: por que raio não mos deu logo? Começa a rir-se, com os dentes todos vermelhos e completamente delapidados pelas bagas vermelhas, alucinogénicas, que deve mascar desde quando tinha a idade do neto. Com o mesmo sorriso começa a empurrar-me para fora da banca, Então “mana”?

Estaria drogada ou não gostou de ver o neto falar Português comigo? É que o Português, apesar de ser língua oficial, quase não é falado nem entendido pela maioria da população. Como tal, quem sabe falar ou tenta, porque, mal ou bem, aprende na escola, é visto como alguém pretensioso…

A verdade é que o rapaz, no seu parco Português, disse-me para não falar com ele no meu parco Tétum. Puxou pelas suas capacidades e mergulhámos numa conversa em que se esforçou para me dizer como é feito o tempé. Porém, já verifiquei que não sabia. Aqui fica o link para quem tenha interesse em saber: http://basilico.uol.com.br/conteudo.php?id=1398. Tal como ele tentou, eu também tentei e conseguimos não só falar durante 5 minutos, como contornar o fosso que nos separava anteriormente (e desta vez não me refiro ao que ali passa com as águas sanitárias).

Olho para a “mana” com ar de incredulidade e, ao mesmo tempo, de descontentamento. De saco na mão, dou meia volta, e deixo as risadas atingirem-me as costas. Já não pude ver se os dentes brancos do rapaz estariam entre elas…

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