sábado, 15 de outubro de 2011

Isto aqui é Timor Leste

Já há algum tempo não escrevo. O que se passa é que, até aqui, tenho escrito sobre factos e, após cerca de três meses em Timor, mais do que sobre factos observados, começo a ter necessidade de escrever sobre pessoas.

Escrever sobre pessoas não é simples, porque, ao contrário do que acontece com os factos, com as pessoas há, quer se queira quer não, uma ligação afectiva. Além disso, ao escrever sobre determinada pessoa, não quero que se generalize o que escrevo sobre ela a todas as pessoas com as mesmas características.

Assim, resolvi escrever sobre factos e, dentro deles, colocar as pessoas ou, quem sabe, tenha sido o contrário.

Nesta altura do campeonato, já consegui criar uma rotina, o que não acontecia propriamente em Portugal, e o meu objectivo de conhecer esta cultura através do contacto directo com nativos começa a ser possível.

Sensações:
- A sensação de claustrofobia de viver numa ilha mantém-se e não sair de Díli faz com que se agrave.
- Sinto que vivo em 3 mundos paralelos: o de Portugal, porto seguro ao qual regressarei, o de Timor dos timorenses e o de Timor dos estrangeiros.

Quotidiano:
- Levanto-me cerca das nove da manhã, exceptuando às segundas-feiras, devido à reunião de departamento, que começa justamente a essa hora, e deito-me relativamente cedo, por volta da meia-noite e meia.
- Como seis vezes ao dia, à hora normal das refeições.
- Vou todos os dias ao ginásio, por volta das seis e meia da tarde, exceptuando aos fins-de-semana, em que vou mais cedo. Frequento aulas e fiz 3 planos de treino para os dias em que não há nenhuma.
- Dou aulas duas vezes por semana numa licenciatura, estando responsável por duas disciplinas.
- Coordeno um grupo de formadores timorenses, que dão aulas de Português em diversos locais.
- Organizei um grupo de teatro, do qual fazem parte alunos e dois dos formadores que referi anteriormente. Temos ensaio de duas horas todas as sextas-feiras.
- Participo numa tertúlia organizada por um desses formadores, que se realiza todos os domingos. Os temas estão relacionados com a actualidade timorense. Por exemplo, a instalação de um pipeline para petróleo em Timor-Leste vs Austrália.

Apontamentos:
- Na universidade há uma prática muito patriótica, que é a cerimónia do içar da bandeira, uma segunda-feira por mês, às oito da manhã. Como não me obrigam a estar presente, penso que a cerimónia a que assisti no distrito de Aileu é suficiente.
- Deixei o taekwondo, porque precisava de treinos mais intensos e menos repetitivos. À partida o tkd seria bom para contactar com timorenses, mas acabei numa aula só para malai (estrangeiros), frequentada também por uma argentina e por uma espanhola, que nunca antes tinham praticado. A fraca preparação física era inversamente proporcional ao respeito pelos treinadores, que embora muito jovens, faziam o melhor que podiam. Voltei ao ginásio. a. Estes ninõs não sabem dar o treino. b. Podemos pedir-lhes para mudarem um pouco. a. Não dá, não dá. b. Mas porquê. No início disse para fazerem treinos sem muitas paragens pelo meio e eles fizeram. a. A gente já pediu para mudarem e não dá. b. Mas podemos falar com eles. a. Eu sei que és professora e talvez tenhas mais paciência, mas isto aqui é Timor Leste.
- O ginásio é frequentado na sua grande maioria por estrangeiros e a mensalidade é de cerca de metade do ordenado de um professor.
- Mudei a minha alimentação no que respeita a legumes e frutas. A variedade do que se pode encontrar nas bancas é grande e gosto de experimentar os produtos locais. Com relação a frutas: mangas, papaias, bananas e abacates. Quanto a tubérculos e legumes: inhame, cenouras, tomate, cebola, alho e batata-doce. Tenho de comprar também mandioca. Há disto e muito mais.
- As distâncias entre casa, universidade e ginásio são curtas, o que me permite poupar muito tempo.
- Neste momento, conduzo um dos carros do Instituto, apenas aos fins-de-semana e ao final da tarde. Isto veio dar-me mais liberdade de movimentos. Pensei numa moto, mas como não percebo nada de motos, desisti quando percebi que nem mudanças conseguia pôr.
- Tenho antena parabólica, gerador e internet a uma velocidade razoável, o que me permite estar mais ou menos actualizada quanto ao que se passa no mundo.
- Encontrei uma solução para as garrafas de água vazias: oferecê-las às "manas" (senhoras) que vendem nas bancas de frutas. Utilizam-nas para colocar outros produtos, como uma bebida alcoólica timorense, picante e gasolina.

O que há em comum entre a moto, as tertúlias e o grupo de teatro é um dos formadores. Trata-se de um jovem, na segunda metade dos vintes, a quem, para terminar a licenciatura, falta apenas terminar a monografia.
Não tem mais de um metro e sessenta de altura e é o que chamo de seco, como grande parte dos homens timorenses. Embora magros, têm grande definição muscular. Vive num bairro já nos arrabaldes de Díli, que dá pelo nome de Pité, a grande distância da universidade, com a mãe, seis irmãos e uma série de outras pessoas, que no total, segundo o próprio, soma 20. Inicialmente o percurso era feito de bicicleta, mas entretanto, o jovem adquiriu uma moto, o meio de locomoção mais comum entre os timorenses.

A casa tem uma construção típica: chão de terra batida limpíssimo, paredes de bambu, divisórias que servem para dormir, onde são colocadas esteiras, sem janelas e com telhado de zinco. Nota: as janelas não são propriamente necessárias, a não ser que se possua ar condicionado. O calor é tanto, que quanto mais arejada for a casa, melhor.

Esta casa foi construída por ele próprio com a ajuda dos familiares num terreno adquirido com uma bolsa de estudo atribuída por um Instituto português. Atenção: o Instituto não é tão generoso que atribua montantes que permitam estudar, comer, adquirir terrenos e lugares no mercado para dar emprego à mãe. O que é certo é que o terreno foi comprado, o lugar no mercado também e a licenciatura está praticamente tirada.

O jovem em questão dá aulas de manhã numa escola primária, é tradutor na Timor Telecom e é formador de Língua Portuguesa. A par disto, como já disse, frequenta o grupo de teatro e organiza as tertúlias.

Em conversa, disse-lhe que estava à procura de uma moto. Passada não mais que uma semana, informou-me que talvez tivesse encontrado uma. Onde? No bairro Pité. Então marcamos um dia e vamos lá de táxi. Não há problema professora, eu levo-a na minha moto.

O negócio da moto não se desenvolveu e o jovem propôs-me vender a dele. a. Não precisa da moto? b. Preciso, mas para mim é mais fácil encontrar outra. Também ando a ver se compro uma para o meu irmão. a. Então e o que é que o seu irmão fez para merecê-la? Ele ainda anda a estudar, não é? b. Sim, mas assim ele pode fazer negócio com ela. a. Negócio? b. Por exemplo, vender peixe. a. Bem, você tem tido muito trabalho com isto da moto, eu gostaria muito de o compensar. b. Professora, nós não pensamos assim. Eu faço isto para ajudar, não é suposto dar nada em troca… O jovem mostrou todos os dentes brancos e alinhados de forma franca e sincera.

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