domingo, 20 de novembro de 2011

O hoje e o amanhã


Nunca voltes aos lugares onde foste feliz. Concordo.
Estou por aqui a queimar os últimos cartuchos e a pensar que nada disto se vai repetir. Mesmo que aqui volte algum dia, o quarto não será o mesmo, as pessoas não serão as mesmas, nem as rotinas.  
A verdade é que também não tenho vontade de voltar. Não gosto de regressos ao passado e os anos trouxeram-me a noção clara de que a vida é muito curta para repetições. Não gosto de sentir saudades nem nostalgia.
É preciso viver o presente, mesmo as coisas mais banais, porque a vida é agora.
Então não me digam está quase. Cada coisa a seu tempo. Agora estou nesta e depois logo viverei outra. Já caí nesse erro antes. Deixem-me olhar bem para todas as coisas que pendurei na parede, para as tomadas bem branquinhas, limpas por mim, para os livros em cima da secretária, ouvir o som do ar condicionado e sentir a presença da D. Amélia na cozinha.
Daqui por uns meses, tudo isto será passado e sei que não terei vontade de aqui voltar, porque isto eu já vivi. Depois, quero algo novo, o amanhã.

O hoje e o amanhã

A semente nasce
Despe a casca
Cede a nova vida
A antiga é deixada

O hoje passa
Encontra o amanhã
O amanhã veste as asas
Deixa o hoje

O brilho das estrelas
Alumia a escuridão
A noite se dispersa
Brota o novo dia

A tristeza desvia-se
Sucede-se a felicidade
A tristeza será narrada
No espelho da alegria

Nuno Esménio Soares
(timorense, professor de Português e meu colega)

Invictus (última estrofe)

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley
(inglês, 1849–1903)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Exercício de oralidade

- Então e aqui quem é que já comeu carne de cão?
Todos se riram.
- Eu como, professora, eu também. Eu não. Eu também não. É saborosa, é como cabrito.
- Mas o cão é um animal inteligente. Quando chegamos a casa, ele abana o rabinho. Vocês nunca chegam a desenvolver uma relação de amizade com os cães?
- Com alguns sim.
- É que, por exemplo, os coelhos e as galinhas estão lá nas coelheiras e nos galinheiros. Agora o cão anda ali pela casa perto de nós.
- Nós temos cães para guardar a casa.
- Então e num dia está ele ali a guardar a casa e no dia seguinte está dentro da panela?
- Normalmente, os cães que nós comemos são comprados...
- Então não chegam a conhecê-los?
- Depende. Se algum se porta mal, se morde, se mata os outros animais,...
- Não merece viver?
- Pois. Mas antes da ocupação, nós não comíamos, mas os indonésios trouxeram esse hábito. Dantes eram só utilizados em rituais.
- E agora?
- Agora, ainda são utilizados em rituais, em alguns distritos.
- E como é?
- Os anciãos fazem umas rezas e depois matam um cão.
- Como?
- Com uma faca no pescoço. Depois o sangue escorre para uma cova.
- E quando é que fazem isso.
 - No S'au Batar, colheita do milho, por exemplo.
- Mas não comem só quando há rituais?
- Sim (a pergunta é feita pela negativa, portanto a resposta vem na afirmativa). De seis em seis meses. De vez em quando.
- E compram sempre o cão vivo?
- Sim.
- E quem o mata? Alguém aqui já matou um cão?
Dois respondem que sim. Um deles é dos mais tímidos da aula.
- Como?
- Metem-se dentro duma saca e depois com um pau ou com um ferro.
- É sempre assim?
- Sim.
- Como é que foi no seu caso?
- No meu distrito, a minha família cria cães.
- E você nunca lhes faz festas?
- Sim. Faço, quando vou pôr comida.
- E depois mata-os?
- Sim, porque o homem é o animal mais importante. O homem pode matar outros animais.
- E as mulheres nunca matam cães?
- Não. Só os homens fazem isso.
- É uma coisa de superioridade do homem sobre o animal?
- Sim, é isso. O homem é superior.
- Em Portugal é o mesmo com as touradas.
 Olham com ar de quem não sabe o que é isso.
- Nas touradas mete-se um boi no meio de um círculo e depois há um homem que lhe vai espetando facas nas costas.
- E você?
- Foi só quando eu tinha 16 anos e o meu cão estava doente. O meu pai disse-me para matá-lo.
- E como foi? Também com a saca?
- Não. Foi com uma corda no pescoço.
- E agora quem costuma fazer isso lá em casa? É você?
- Não, era o meu avô, mas ele morreu.
- Então quem é agora?
- Vão lá os meus primos.
- E você?
- Eu não gosto. Fico triste.
- Alguém aqui já teve algum cão de estimação?
- Eu já. Quando eu chegava da escola, ele abanava sempre o rabo. Quando ele morreu, chorei durante uma semana.
- Mas você come na mesma carne de cão.
- Sim, mas são aqueles que se vendem.
 - E o seu cão morreu como?
- Roubaram-no.
- Eles pescam-nos.
- Pescam cães?
- Sim. Põem um bocado de carne numa linha e vão puxando e eles vão atrás.
- A mim também já me roubaram um cão.
- Eu tinha dois. Uma vez, fui de férias e quando voltei já não estavam lá. Os meus primos disseram que os tinham matado, porque morderam uma menina.
- Boa desculpa. Deviam era estar bem gordinhos.
- Não. Eu vi a marca no braço dela.
- Eu só comi uma vez. Foi quando a minha mulher estava no hospital para ter o filho. Estava cheio de fome e vim cá fora a um restaurante. Pedi duas cervejas e petiscos. Entretanto, comecei a ouvir uns cães a ladrar e pensei que estivessem presos. Quando fui ver, a parte de trás do restaurante estava cheia de cães. Depois é que percebi que estava a comer carne de cão. Mas era saboroso.
- Mas não se pode comer muita, porque faz pressão alta.
- Os meus primos não podem comer.
- Porquê?
- Porque se comem ficam aleijados.
- A família da minha mulher também não.
- Porquê?
- Porque ficam com problemas de pele.
- O meu avô também me disse que na nossa família ninguém pode comer, senão fica com escamas na pele. Eu nunca comi.
- Eu não como, mas não concordo que as pessoas dêem mais importância aos animais do que aos seres humanos.
- E há aqui quem dê?
- Um colega meu brasileiro, quando cá chegou, começou a perguntar como era possível comermos cães, animais que são nossos amigos e, agora, quando o ex-presidente do Brasil, o Lula, ficou com cancro na garganta, ficou contente. Não entendo isso.
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